Maternagem também é resistir com o próprio corpo
Começar por aqui não é aleatório. Antes da pauta, do roteiro, da entrevista, da teoria: o corpo. E mais do que isso — o corpo de quem materna. Corpo com dor, com espasmo, com cuidado redobrado. Corpo que não aparece nas propagandas de fralda ou nas capas de revista. Corpo com deficiência.
A maternagem atípica ainda é um ponto cego nas políticas públicas, na mídia e até nas conversas entre mães. Quando uma mulher com deficiência engravida ou adota, o que mais escuta é espanto, julgamento e infantilização. O mundo ainda pergunta: “mas será que ela dá conta?” — como se a maternagem fosse privilégio dos corpos padrões, jovens, andantes e eficientes.
Mas esse texto não é para responder ao mundo. É para escancarar que existem outras formas de maternar. E que o autoamor, como propõe Lu Rodrigues em Maternidade Com Autoamor, é uma prática de sobrevivência. Uma prática política.
Este trecho não vai se ocupar da dor como ponto final, mas da possibilidade de cuidado a partir do afeto. Do cansaço que não precisa ser negado. Do corpo que pode pedir colo — mesmo enquanto oferece colo. Da mulher que pode dizer “eu preciso de ajuda” sem que isso seja visto como fraqueza. Porque não é.
A maternagem sendo uma mulher com deficiência é, sim, um ato de resistência. Mas não precisa ser um ato solitário. Esse projeto começa aqui: no reconhecimento de que o corpo de quem cuida também importa. Que a escuta precisa ser ativa. E que a luta por direito à maternagem passa, necessariamente, pelo direito de existir inteira, imperfeita e real.
Mães que o mundo não vê
Em uma das cidades mais populosas e influentes do Brasil, entre o concreto, o ruído e a pressa das estações de metrô, algo diferente ocupava o espaço: rostos de mães com deficiência. Corpos que normalmente são empurrados para a margem surgiam ali, amplificados pelas lentes de Maria Paula Vieira, na exposição Mães Invisíveis (2020–2021).
O nome do projeto é tão potente quanto necessário. Invisíveis, não por ausência, mas por apagamento. Invisíveis porque o imaginário social insiste em dizer que uma mulher com deficiência não pode maternar — como se ela não tivesse desejo, potência, capacidade ou amor suficiente para cuidar de uma criança.
Com 20 fotografias espalhadas por estações movimentadas de São Paulo — Higienópolis-Mackenzie, Fradique Coutinho, São Paulo-Morumbi —, a exposição foi mais do que um trabalho artístico: foi uma intervenção política, um ato de denúncia e de afirmação. A maternagem atípica, ali, ganhava lugar, cor, textura e nome.
Entre essas imagens está a de Mona Rikumbi, mãe solo, mulher negra e artista com deficiência, que diz com clareza:
“O racismo faz meu filho correr riscos. O capacitismo faz a sociedade achar que não posso dar conta de ser mãe. Mas o amor que temos mostra que somos capazes de abraçar tudo.”
As lentes de Maria Paula não buscavam suavizar nem estetizar a luta. Elas mostravam corpos reais, afetos reais, maternagens reais. O projeto deu visibilidade — mas também devolveu identidade a quem tantas vezes foi desautorizada a existir publicamente como mãe.
Como escrevi no texto Pelas minhas lentes: a óptica fotográfica de Maria Paula Vieira, publicado durante meu TCC e disponível no site https://pcdforadocasulo.com.br/?p=169
“A câmera dela não está na altura do olho do outro. Está na altura dela. Essa câmera que dança na altura do seu corpo de mulher com deficiência, que dança com a cadeira, com os filhos, com o tempo e com a cidade. Ela está em movimento com a própria vida.”
Porque antes da assistência, vem a escuta. Antes da política pública, vem o direito à imagem. E nenhuma mulher deveria precisar provar que pode ser mãe só porque o mundo insiste em negar seu corpo como possível.
O amor que nos negam, a maternagem que insistimos em viver
Há um tempo, escrevi um texto que começa com uma fresta: “Eu também sou feita pra amar. E pra ser amada.” Era o texto Amar também é um direito: o afeto que ainda nos negam, publicado também no site https://pcdforadocasulo.com.br/?p=333
Naquela ocasião, falávamos de corpos com deficiência e da negação do desejo — do afeto visto como exceção, da sexualidade tratada como tabu. Hoje, voltamos àquele mesmo ponto de partida, mas com outro nome no centro: a maternagem.
Porque se amar já nos é negado, maternar com liberdade é quase tratado como delírio.
Quando uma mulher com deficiência diz que quer ser mãe, o mundo primeiro se assusta, depois interroga, depois julga — e muitas vezes tenta impedir. Questionam sua capacidade, sua “lucidez”, seu direito. Imaginam a deficiência como um obstáculo intransponível — como se o corpo que foge da norma não pudesse, também, gerar cuidado.
Nos olham com admiração silenciosa, mas raramente com confiança. E muitas vezes, sequer nos olham: falam com o acompanhante, com o médico, com o Estado — mas não conosco.
No texto que escrevemos antes, chamamos isso de capacitismo afetivo. Agora, podemos chamá-lo também de capacitismo reprodutivo e materno — essa lógica que transforma o nosso desejo de maternar em perigo, e o nosso afeto em irresponsabilidade.
Mas queremos afirmar com todas as letras:
Maternar também é um direito. Não o direito de reproduzir porque se espera isso de toda mulher — mas o direito de decidir. De escolher, de construir, de sonhar.
E se a sociedade ainda duvida, a gente responde com presença. Com rede. Com palavra. Com maternagem que escapa da lógica do sacrifício e se ancora na escolha.
Porque a luta por autonomia não para no corpo. Ela atravessa também o cuidado. Atravessa o ventre, o afeto, o futuro.
E se amar é um direito — como escrevemos antes —, maternar também é. E o que nos negam com silêncio, a gente grita com vida.
Quando o cuidado é interrompido: maternagem, emergência e apagamento
A maternagem atípica, que já é silenciada em tempos ditos “normais”, some por completo quando tudo desaba. Não há dados, protocolos ou políticas que incluam essas mulheres nos planos de emergência. Não se pensa em acessibilidade nos abrigos. Não se pensa em tecnologias assistivas perdidas nas águas. Não se pensa no corpo que é, ao mesmo tempo, cuidador e PCD, mãe e dependente de cuidado, exausto e responsável por uma outra vida.
Nesses contextos, a vulnerabilidade se amplia: cresce o risco de violência de gênero, de institucionalização forçada, de retirada arbitrária dos filhos. Desastres climáticos não são neutros. Eles revelam (e aprofundam) as desigualdades. E entre elas, está o completo apagamento da maternagem com deficiência — um apagamento que é também uma negação de direitos reprodutivos, sexuais, afetivos e existenciais.
Fazemos aqui referência ao Guia de Orientação para Meninas e Mulheres com Deficiência em Situação de Emergência Socioambiental, elaborado pelo Coletivo Feminista Helen Keller em articulação com o GT Mulheres da Defensoria Pública da União. O documento aponta a necessidade de uma resposta específica às mulheres com deficiência em contextos de desastre, reconhecendo o risco de negligência institucional, abandono e violência.
Falar de justiça climática é, portanto, falar também de justiça anticapacitista. É convocar o Estado, os coletivos, os movimentos sociais e as comunidades a reconhecerem que, quando tudo ruir, é preciso proteger quem já vivia nos escombros. E as mães com deficiência estão entre essas existências que resistem mesmo quando não se vê.
Autonomia e desejo também são maternagem
Encerrar esse percurso sem falar de autonomia seria seguir reproduzindo o que o capacitismo historicamente fez com as mães com deficiência: negar-lhes o direito de desejar, escolher, planejar. De ser mãe porque querem — e não porque foram impedidas de evitar. Ou de não ser mãe porque escolheram — e não porque foram impedidas de exercer esse direito.
As violações aos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres com deficiência ainda são alarmantes. Há relatos de esterilizações forçadas, ausência de informação acessível sobre métodos contraceptivos, planejamento familiar excludente, violência obstétrica, partos sem consentimento. O corpo da mulher com deficiência ainda é lido como um corpo infantil, assexuado ou incapaz — e isso atravessa diretamente sua experiência como mãe.
Mas ser mãe com deficiência é também reivindicar o prazer, o amor, o afeto, a dignidade. É dizer que esse corpo pode amar, transar, gozar, desejar, abortar, parir, decidir. A maternagem atípica não anula a subjetividade: ela a potencializa.
Fazemos eco aqui ao documento Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos das Mulheres com Deficiência, do GT Mulheres da Defensoria Pública da União. Reivindicar esses direitos é romper com o ciclo de silenciamento e violação. É afirmar que não existe cuidado real sem autonomia. Que não há justiça reprodutiva sem ouvir — e respeitar — as vozes de quem materna a partir de outros corpos, outras formas, outras resistências.
A maternagem atípica não é exceção, nem inspiração pronta. É vida real. É direito. É cotidiano. É potência.
Ao longo desse texto, afirmamos: é urgente ouvir, respeitar e proteger as mães com deficiência. Não só como mães. Mas como mulheres inteiras. Como protagonistas. Como parte fundamental de qualquer sociedade que se queira justa.
Maternar com deficiência é viver — e resistir. E é tempo de construir um mundo onde isso não precise mais ser um ato de coragem solitária.
