A neurologia, essa ciência das delicadezas invisíveis, estuda falhas e colapsos que nos atravessam — na fala, na linguagem, na visão, na memória, na percepção sensorial e, por vezes, até na ideia de ser alguém. Com o tempo, as imagens do cérebro ficaram mais nítidas. Mas nitidez, sozinha, não basta. Foi aí que surgiram vozes como a de Oliver Sacks — neurologista que escutava além das sinapses.

Sacks propôs a neurofenomenologia do self: uma neurologia que reconhece a subjetividade como parte essencial do diagnóstico. Para ele, a doença não era apenas uma interrupção física, mas um abalo no “quem” da pessoa não apenas no quê”. Desde Broca e Freud, já se desenhava uma ciência que, mais cedo ou mais tarde, teria de encarar o corpo como lugar da narrativa. Com Sacks, a identidade virou protagonista da neurologia — seja na mulher que perdeu a propriocepção e se viu “desencarnada”, seja no próprio Sacks, que deixou de reconhecer sua perna como parte de si.

Esses relatos não são apenas clínicos. São existenciais. Sacks não via pacientes, via personagens — com enredos interrompidos, tentando costurar o próprio eu. Para ele, o cérebro era ponto de mutação da identidade. Incorporava a escuta, o espanto — e talvez, sem nomear, aquilo que a música provoca: o toque em zonas internas que nem sabíamos existir.

Antes do gesto e do pensamento, há a sensação de habitar um corpo. E, quando o corpo falha, a identidade falha com ele. Ao observar essas perdas e reencontros, Sacks propôs algo além da neurologia tradicional: uma neurologia do eu. Uma ciência que entende que perder o corpo é, de certo modo, perder a história que contamos sobre nós mesmos. E é aí que a música se insinua — porque ela também habita esse espaço: o pré-verbal, o não dito, o que se move por dentro

O som que escapa da caixa torácica e encontra casa no cérebro

A música entra em nós antes da fala — e permanece mesmo quando a memória falha. Vibra em ondas, atravessa o ar até o tímpano e, dali, é convertida em paisagem emocional. Como explica o neurocientista Daniel Levitin, esse processo está longe de ser simples: o cérebro interpreta sons instáveis, imprevisíveis — e quase sempre acerta.

Ouvir uma canção é preencher lacunas. A música é lida pelo corpo inteiro: o córtex auditivo identifica as notas, o hipocampo convoca memórias, a amígdala interpreta emoções, o cerebelo regula sentimentos, o córtex motor responde com movimento. Uma orquestra invisível que transforma o intangível em emoção palpável.

A infância como primeira casa da música

A escuta nasce no corpo. E o corpo da criança é um mundo aberto. Ela experimenta sons com a boca, as mãos, o chão. Transforma ruído em brincadeira, ritmo em linguagem. O cérebro infantil, mais maleável, se expande com a música.

Estudos mostram que a musicalização desenvolve atenção, memória, criatividade, socialização, autodisciplina e sensibilidade. Howard Gardner aponta uma relação direta entre inteligência musical e lógico-matemática. Música é padrão, repetição, pausa, variação, ritmo — tudo isso exige foco, percepção espacial e controle motor.

Aurilene Guerra, da UFPE, lembra que tocar ou perceber música envolve processos cerebrais semelhantes aos das equações matemáticas. Música não é adorno: é arquitetura mental. Vygotsky dizia: o prazer é motor da aprendizagem. Musicalização não forma músicos. Forma escutadores sensíveis. Crianças que escutam, criam. Que dançam, se expressam. Que sentem, aprendem.

Do gesto ao som: o corpo como instrumento e a escuta como dança

Antes de ser nota, a música é impulso. Antes de técnica, é intenção. Começa no corpo — e nele permanece. Na sala de balé, o som é fio condutor. Cada movimento nasce da escuta.

Para quem ensina dança, música não é trilha de fundo. É estrutura, ritmo e tom — sonoro e emocional. A sensibilidade musical, mesmo inata, precisa de treino, repetição, escuta atenta. O professor é ponte entre som e gesto.

Toda coreografia começa antes da primeira nota forte. Esse instante chama-se anacrusa — a preparação. Tética é quando a música começa no tempo forte. Acéfala, quando não há nota de entrada. Para iniciantes, a música precisa ser clara, com pausas reais para o corpo respirar.

Escutar é mais que ouvir: é interpretar. Envolve emoção, memória, linguagem, contexto. Uma cantiga de roda é mais que repetição — é tradução do mundo. Com o tempo, a criança escuta até o que não está presente: a intenção, o silêncio, a ausência. A música vira estrutura do pensamento.

Do som que encanta ao som que reabilita

Neuroplasticidade é a capacidade do cérebro de se reorganizar. Ao aprender uma canção ou andar de bicicleta, criamos novas conexões neurais. A música estimula várias áreas cerebrais ao mesmo tempo. Fortalece circuitos. Abre rotas novas.

Músicos têm mais massa cinzenta em regiões ligadas à memória e à percepção espacial. Mas a música também é ferramenta de reabilitação. Após um AVC, por exemplo, é possível reconstruir caminhos perdidos com fisioterapia, fonoterapia — e música.

A musicoterapia já é usada no tratamento de Alzheimer, Parkinson, autismo, ansiedade, depressão e epilepsia. Ativa áreas emocionais, linguísticas e de memória. O neurofeedback utiliza frequências sonoras — como a 432 Hz — para treinar atenção e reduzir a ansiedade.

Desde o útero, a música faz parte da nossa história. Aos cinco meses de gestação, o bebê já escuta. Ao nascer, reconhece o timbre da mãe. Depois vêm as cantigas, o parabéns, as vozes queridas — memórias de afeto.

Educadores como Melissa Lima, Deborah Rossi e Danilo Tomic defendem a música como caminho para escuta, lógica, empatia e saúde.

Porque o som organiza. O som cuida. O som reconstrói.

Música é reabilitação. Música é identidade. Música é elo.
Música é cérebro em movimento. E movimento é vida.

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