“Macabéa só brilha quando morre. E a gente, quando começa a ser visto?”
Tem gente que só aparece depois que vai embora. Tem corpo que só vira presença quando vira ausência. Vidas que só ganham nome quando acabam. Rodrigo, narrador de A Hora da Estrela, diz que “a morte é um encontro consigo”. Mas e quem nunca foi encontrado em vida? Quantas pessoas com deficiência seguem invisíveis, sem que ninguém perceba seu brilho? Macabéa, sombra apagada, palavra engolida, amor não correspondido — só ao morrer vira tragédia, nome, reconhecimento. Essa pergunta incômoda reverbera: é preciso morrer para ser visto?
O luto que antecede a morte
O luto, como já ensinou Elisabeth Kübler‑Ross, não espera a morte para se manifestar. Ele mora no silêncio dos corredores, nas negativas repetidas, na exclusão diária que apaga possibilidades. Para pessoas com deficiência, esse luto é antigo — da escola que não acolheu, do afeto que nunca chegou, dos sonhos que nem puderam ser sonhados. É o luto que John Bowlby descreveu como a dor pela perda do vínculo, mesmo que esse vínculo jamais tenha sido plenamente construído. Herdado de famílias que esperavam cura, não aceitação. Do olhar que rejeita, do profissional que não escuta, do mundo que ignora. Viver invisível é perder um pouco todo dia.
Ausência que funda
A ausência nem sempre vem depois da perda — às vezes, ela é fonte. Pai que some, rede que falha, cuidador que vai embora, Estado que não aparece. Quando uma pessoa com deficiência perde alguém, o peso da perda dobra: vai o afeto e desmorona o cotidiano, esvazia a autonomia. É o que William Worden chama de “tarefas do luto”: enfrentar a perda, sim, mas também reconstruir a vida com o que resta. Ainda assim, espera-se força, resiliência, gratidão — como agradecer por migalhas? Como sustentar-se quando o luto ganha corpo até no amparo que some?
O futuro depois do ir
Depois da perda, o tempo desanda. O futuro, que já era turvo, fica ainda mais rarefeito. Para quem vive com deficiência, o tempo nunca foi linha reta — é espiral, como Clarice Lispector escreveu: cheio de voltas, pausas, recomeços. O luto reconfigura os modos de existir, abrindo espaço para reinvenções. Mesmo com dor, o futuro segue possível — tecido em ritmo próprio, com gestos mínimos e esperança sem euforia.
A pressa de arrumar alguém
“Você precisa de alguém.” Essa frase, dita como cuidado, asfixia. Pessoas com deficiência vivem vínculos impostos: qualquer companhia serve, qualquer amor basta, qualquer presença preenche. Mas nem todo afeto cura. Há relações nascidas do medo da solidão, não da escolha. E isso também é luto: não poder esperar por algo que valha a pena. Afeto pleno, não condescendente.
Luto é verbo: lutar
Luto é luta — verbo ativo. Lutar contra o apagamento, os amores míseros, o silenciamento institucional. Lutar por dignidade, por afeto que seja direito, não favor. Como disse Mário Quintana, “a morte é a curva do rio”; o luto é estrada. Caminho de luta para não ser substituído, não ser esquecido, não virar estatística. Luto vira verbo de resistência: político, vivo, contínuo.
Corpo marcado pela ausência
O corpo com deficiência carrega marcas da ausência — toque, desejo, cuidado, visibilidade. Ele recolhe o luto: no gesto que faltou, no olhar que desviou, no desejo que jamais encontrou resposta. Manuel Bandeira captou essa dor contida em seus versos. Mas esse corpo é potência. Mesmo negado, ele vive, sente, dança, cria, pulsa. A dor mora nele — e a reinvenção também. Ausência e presença plena.
Corpo de bruxa: o corpo que resiste
É nesse sentido que as falas de Eliane França no vídeo que ela compartilhou ganham eco neste texto. Ao falar de “corpo de bruxa”, ela nomeia um corpo que a sociedade tentou esconder e silenciar — e que, mesmo assim, continua a existir com potência subversiva. No vídeo, Eliane diz: “corpo de bruxa é corpo que insiste em existir contra o apagamento”. Esse corpo de bruxa carrega em si a força que se recusa a desaparecer. O corpo com deficiência, nesse movimento, é também corpo de bruxa: resistindo ao apagamento, afirmando presença, dignidade, autonomia — mesmo quando ferido, mesmo quando fora da norma.
Invisibilidade social
Ser invisível é morrer devagar. Estar vivo e não ser contado. Pessoas com deficiência vivem à margem da visibilidade quotidiana, enfrentam infantilização e descaso. A sociedade não as vê como cidadãs, sujeitos de desejo, protagonistas. Invisibilidade social é ausência estrutural e crônica. Esse apagamento é luto: perda de futuro, pertencimento, dignidade.
Luto afetivo
Nem todo luto surge da perda física. Muitos nascem de vínculos interrompidos, afetos que não se sustentam. Pessoas com deficiência conhecem esse luto: relações construídas no capacitismo, não no amor genuíno. É o luto de quem ama e não é amado, de quem deseja e não é desejado, de quem espera explicações que não chegam. Mesmo invisível, esse luto pesa na pele — porque o afeto que parte leva pedaços da gente.
Resistência do afeto
Ainda assim, o afeto resiste. Surge em encontros improváveis, amizades que acolhem, gestos que sussurram: “você importa.” Amar, nesse contexto, é insurgência. É entender que cuidado não é caridade, é direito. O afeto é onde o luto encontra chão. Pequena luz que sobrevive.
Tempo e luto
O tempo do luto é irregular. Não segue cronogramas, nem datas. Pessoas com deficiência já vivem outros tempos: espera, adaptação, reinvenção. O luto caminha com esse compasso — dias em que tudo se repete, dias em que tudo silencia. Respeitar esse tempo é reconhecer a singularidade de quem sente. Sem pressa, sem cobrança. Só presença.
Silêncio do luto
Nem sempre o luto vira palavra. Às vezes, vira silêncio espesso — silêncio que ninguém escuta, mas que pesa no ar. Para quem já é calado pelo mundo, esse silêncio se intensifica. Faltam espaços de escuta, interlocutores que acolham sem pressa. Às vezes, tudo que se precisa é alguém que diga: “não precisa explicar agora.” Sentir, mesmo sem nomear, é direito.
Luto institucional
Há lutos que têm CNPJ. Direitos negados, políticas públicas falhas, cuidados que somem. Isso também é perda. Não é metáfora: é dor concreta. A resposta só pode ser coletiva. Luto é indignação. E exige reparação, presença, justiça.
A busca por sentido
Luto é busca. Nem sempre há respostas — mas há instantes que sustentam: um café, um olhar que entende, um toque leve. Clarice dizia que a vida é feita de instantes. No luto, cada instante pode ser âncora. Não precisa ser épico, só vividamente real.
O encontro com a vulnerabilidade
Luto desmonta. Revela fragilidades que insistimos em esconder. Para pessoas com deficiência, essa vulnerabilidade já é escancarada pela sociedade. Ainda assim, permitir-se sentir é ato de coragem. Estar ferido também é estar vivo.
Luto e deficiência: camadas de invisibilidade
Viver o luto sendo pessoa com deficiência é enfrentar silêncios dobrados. A dor da perda soma-se à dor de não poder vivê-la publicamente. É o luto por si — pela autonomia negada, vínculos interrompidos, vida limitada pelo olhar alheio. Esse luto existe. Precisa de espaço, escuta, política, poesia.
A arte como travessia
Quando tudo falha, a arte atravessa. Transforma ausência em gesto. Para pessoas com deficiência, a arte é liberdade — lugar onde o corpo não precisa se justificar, onde a dor ganha forma, onde o luto encontra nome. Não cura, mas faz sentido.
Redes de apoio e acolhimento
Ninguém atravessa o luto sozinho Para pessoas com deficiência, redes de apoio são linha de vida — mas nem sempre estão ou sabem como acolher. Escutar com cuidado é tarefa rara. Às vezes, tudo que se precisa é alguém que diga: “você não precisa ser forte agora.” Acolhimento é presença sem pressa.
O lugar da memória
Memória é o que sobra quando tudo vai. Onde o amor continua vivo, mesmo depois da perda. Para pessoas com deficiência, lembrar é resistir ao apagamento. Memória é gesto político: “eu estive aqui, vivi isso.” No luto, lembrar é manter presença. Ritual íntimo, gesto de afeto, reconstrução de vínculo.
O corpo e o luto
O corpo sente antes da palavra. É no peito apertado, na insônia, no tremor que o luto se anuncia. Para quem vive com deficiência, o corpo já é terreno de disputa — e também de potência. Ele se levanta, acolhe, sobrevive. Mesmo ferido, ele é vida. E essa vida merece espaço.
O futuro possível
O luto não é fim. É dobra. O futuro depois dele não será o mesmo — mas continua possível. Para pessoas com deficiência, esse futuro precisa ser tecido com desejo, tempo e direito. Um futuro que respeite a dor e celebre a continuidade. Um futuro vivo.
Luto como verbo: lutar
Luto é luta. Por presença, cuidado, afeto, justiça. Luta para ser reconhecido em vida, não só depois da morte. Para brilhar agora — não apenas na despedida. Para dizer: “eu existo. Eu importo.” Para viver com dignidade, como pessoa com deficiência, é luta — e direito inegociável.
