O que pulsa por trás do desejo de curar um corpo com deficiência? Onde termina o cuidado e começa a correção? A rizotomia dorsal seletiva cirurgia que corta raízes nervosas para aliviar a rigidez da paralisia cerebral é uma dessas fronteiras. Entre a esperança e o risco, entre o bisturi e a autonomia, há um corpo. É nele que queremos olhar, sentir, pensar.

Há corpos que chegam antes das palavras. Corpos que pisam o mundo sob o peso de um veredito imediato: “é preciso fazer algo”. Antes mesmo de descobrirem seus contornos, já são atravessados por metas de correção. Antes de tocarem o chão, carregam a promessa da elevação.

A deficiência, nesse desenho, não é condição é problema. Mas e se o problema não estiver no corpo, e sim no olhar? Se a angústia for social e não física? Se o desejo urgente de cura disser mais sobre quem observa do que sobre quem vive?

Essa é a provocação que abre o caminho: aceitar o corpo que a medicina quer curar. Porque entre a promessa e o bisturi, entre o risco e a norma, há um corpo. Um corpo possível. Presente. Inteiro. Mesmo quando o mundo insiste em chamá-lo de falta.

Medicina: cura, norma ou escuta?

A medicina salvou milhões de vidas. Mas toda ciência carrega crenças, limites, histórias. Por muito tempo, corpos fora do padrão biomédico foram vistos como erro. A deficiência virou sinônimo de anormalidade algo a ser corrigido. O modelo médico, dominante por décadas, focava no corpo e ignorava o contexto.

Como diz a pesquisadora Marta Schorn:

“O modelo médico busca normalizar corpos e reduzir sinais que desviam da expectativa funcional e estética.”

Nessa lógica, a deficiência não é uma forma legítima de existir mas um desvio a ser apagado. Nos últimos anos, essa visão começou a ruir. Estudos críticos e movimentos de pessoas com deficiência propuseram outra leitura: e se a deficiência não estiver no corpo, mas nas barreiras impostas por uma sociedade que só reconhece um único tipo de normal?

Esse deslocamento exige mais que diagnóstico exige escuta. Escutar o sujeito. O contexto. A pluralidade do humano. Não é negar tratamentos é ressignificar a ideia de cura. Cura para quem? Segundo que referência? Em nome de quê?

Autonomia e bioética: o que a medicina precisa ouvir

A medicina nasceu para curar. Mas a cura só acontece quando há escuta. Quando um corpo é silenciado pela ciência, rompe-se mais que um tratamento: rompe-se a autonomia base da bioética.

Descartes nos ensinou a duvidar do que parece certo. Será que o modelo biomédico da deficiência resiste a essa dúvida? E se estivermos presos na caverna de Platão, vendo apenas a sombra de um corpo ideal normativo, projetado por uma medicina que interpreta o desvio como erro?

Essa é a prisão do corpo normativo. Quem tenta sair é puxado de volta por protocolos, diagnósticos, prescrições.

O que está em jogo é o direito de dizer não:
Não à cirurgia que corrige, mas fere.
Não à intervenção que transforma, mas silencia.
Não à promessa de normalidade que exige abrir mão da própria identidade.

Consentimento informado não é assinatura num papel. É escuta ativa. Constante. Respeitosa. Intervir sem escutar ou escutar apenas para confirmar o que já foi decidido é violar a autonomia.

O mito da perfeição e o corpo que se tenta apagar

De Platão a Philip K. Dick, a filosofia e a literatura alertaram sobre o desejo de um mundo perfeito e as tragédias que esse desejo produz. Na Utopia de Thomas More, tudo é harmonia mas só porque o que foge à norma foi eliminado. A perfeição cobra um preço: o apagamento das diferenças.

Em Time Out of Joint, Dick apresenta um mundo idealizado que se revela farsa construído para esconder uma guerra. A perfeição funciona como anestesia moral: oculta a dor em nome do conforto visual.

Essa estética ideal se parece com as pinturas de Norman Rockwell: jantares impecáveis, famílias sorrindo. Mas quem ficou de fora da mesa? Quantos corpos foram apagados para que a cena parecesse perfeita?

Na vida real, essa busca pela perfeição se traduz numa medicina que persegue o “melhor resultado” mesmo que isso signifique apagar o diferente. A utopia do corpo funcional. Da marcha reta. Da fala sem tropeços.

Mas corpos não são utopias. São presenças.
Aceitar o corpo que a medicina quer curar pode ser o primeiro passo para trazê-lo de volta à realidade.

Rizotomia dorsal seletiva: promessa, risco e esperança

Tem gente que nunca ouviu falar. Tem quem pesquisa por meses. E tem quem decide com o coração apertado, mala pronta. A rizotomia dorsal seletiva não chega devagar. Ela vem como promessa, dilema talvez.

No papel, é simples: cortar raízes nervosas que enviam sinais “desorganizados”, para reduzir a espasticidade muscular. Na prática, é mais complexo.

Indicada para crianças e adolescentes com paralisia cerebral, quando há rigidez significativa mas ainda força e controle. Um ponto de equilíbrio: nem cedo demais, nem tarde demais. Quando dá certo, é transformador. Abre espaço para mais movimento, menos dor. O corpo ganha margem para ser corpo.

Mas não é mágica e não serve para todos.
Tem quem volte com mais equilíbrio.
Tem quem precise reaprender a sentar.

A melhora vem, mas com riscos. Com uma recuperação longa, cara nem sempre acessível. Nos EUA, há centros especializados e protocolos bem estabelecidos. No Brasil, os serviços públicos são poucos e as filas, infinitas.

É nesse intervalo entre o possível e o prometido que as decisões são tomadas. Empréstimos, vaquinhas, medo. Porque mais do que cortar um nervo, a cirurgia tenta cortar uma dúvida:
“E se essa for a chance do meu filho andar?”

Que corpo queremos? E a que custo?

Talvez a pergunta não seja se a rizotomia funciona.
A pergunta que atravessa tudo é:
Que corpo queremos?
E por quê?

O corpo que não contrai. Que não balança. Que pisa firme e em silêncio. O corpo moldado para caber no desejo dos outros e que, de tanto caber, se perde de si.

A cirurgia promete um corpo “menos espástico”.
Mas menos espástico para quem?
A que custo?

Porque o corpo que se adapta também se perde. O movimento que era só nosso passa a ser vigiado. A rigidez dá lugar à insegurança. A melhora esperada vira cobrança.

Não se fala disso.
Do estranhamento de habitar um corpo reconfigurado.
Do medo de andar diferente mesmo quando esse era o objetivo.
Do silêncio onde antes havia espasmo.

Mas é preciso falar. Porque a cirurgia não é sobre cura é sobre escolha.
E toda escolha implica perda.

Talvez o corte mais radical que precisamos não seja na medula
mas na ideia de que só existe uma maneira certa de ter corpo.

Corpo possível não é o que se aproxima do ideal.
É o que abriga.
O que sustenta.
Mesmo que trema
.

Resistência: o corpo que recusa ser corrigido

No fim, tudo se resume a uma pergunta:

E se eu não quiser ser corrigida?
E se minha espasticidade não for erro?
Se meu jeito de andar, cair, levantar — for só meu?

Isso não é desistência. É resistência.
Resistência a um mundo que tenta aparar qualquer desvio.
Que nos ensina que só seremos válidos se formos consertados.

Mas…
E se nada estiver quebrado?

Penso no que perdi tentando caber. Nos movimentos prometidos que nunca chegaram. Na dor que não sumiu só mudou de lugar. No silêncio depois da última sessão, quando só restou meu corpo tentando entender quem ele era agora.

A rizotomia pode ser caminho. Para alguns, é.
Mas toda intervenção é política.
Escolher permanecer também é.

Talvez o corpo mais radical não seja o que se adapta
Mas o que insiste.
Mesmo torto.
Mesmo espástico.
Mas inteiro.

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